Um dos maiores problemas de ser escritor é ter de fazer também o papel de ator. No cinema, quem interpreta as personagens ganha tanto liberdade quanto responsabilidade de desenvolver a personalidade de tal personagem. Claro que o autor cria e o diretor guia, mas os atores são aqueles vistos pelo público.
Quem escreve um livro deve também escrever os trejeitos das personagens, seus medos e reflexões. As palavras devem ser escolhidas a dedo, para dar uma voz a cada um dos indivíduos que participam da história. Isso se torna, de certa forma, um fardo que temos de carregar. Por outro lado, essa liberdade de poder criar novas pessoas é o que leva os autores a escrever.
Seja como for, não é uma tarefa simples. Por isso, darei umas dicas aqui que sempre vejo reiteradas nas comunidades de escritores, retirando conceitos apresentados no livro “Writing Fiction for Dummies” de Randy Ingermanson e Peter Economy.
Definindo papéis
Assim como os atores tem papéis em filmes e peças, suas personagens também precisam cumprir funções dentro da história. Apesar de você ser original na criação das personagens, existem certos padrões que você provavelmente irá seguir, visto que eles estão bem estabelecidos na ficção. Tais padrões são conhecidos como arquétipos. A seguir, listo alguns arquétipos bem conhecidos.
- Herói (protagonista): Geralmente, o herói é a pessoa por quem o leitor está torcendo. O herói normalmente é forte, porém possui falhas. O protagonista pode ser tanto um homem quanto uma mulher. Nos livros românticos, a protagonista é a heroína, e o par amoroso também é conhecido como herói.
- Vilão (antagonista): O vilão é aquele que se opõe ao herói, sendo que um luta contra o sucesso do outro. Em séries, é comum o mesmo herói enfrentar vários vilões (como ocorre com James Bond), ou o antagonista pode sobreviver para outro dia. O vilão também pode ser a personagem principal, como em “O Dia do Chacal” de Frederick Forsyth.
- Anti-herói: É um protagonista não tradicional que carece das virtudes comuns aos heróis. Geralmente fazem o bem geral, apesar de seguirem objetivos egoístas.
- Companheiro (sidekick): Este é um amigo próximo do herói, normalmente possuindo qualidades que o complementam. Um exemplo é o Dr. Watson, companheiro famoso de Sherlock Holmes.
- Mentor: É o professor do herói, mais velho e sábio, que o guia ao caminho da maturidade. Obi-Wan Kenobi é o mentor de Luke Skywalker, por exemplo. Em “O Senhor dos Anéis”, Gandalf age como mentor de Frodo. O papel de mentor é perigoso, pois não é raro ele morrer, deixando o herói sem completar seu treinamento.
Se você fizer uma pesquisa, facilmente encontrará lista de arquétipos mais específicos como traidor, protetor, gladiador, tolo, musa, femme fatale, amazona, matriarca, entre muitos outros.
Arquétipos servem como uma boa inspiração para o desenvolvimento de personagens, apenas tome cuidado para não criar um elenco de clichês. Além disso, não é incomum misturar características de dois ou mais arquétipos na mesma personagem.
Dando passado a suas personagens
Cada uma de suas personagens tem uma história. Elas têm famílias e genealogias extensas, além de possuir uma vida anterior à história que você quer contar. Isso tudo é responsável por formar o caráter dela, após passar por traumas e triunfos. É um guia para descobrir como sua personagem se comporta—e como ela pode mudar.
Você não precisa criar esta pré-história da personagem de uma vez. Conforme você compreende sua narrativa, elas vão tomando forma e revelando mais sobre si mesmas. Eu mesmo só consegui criar biografias das personagens após fazer algumas sinopses do enredo. Talvez você pense nisso após terminar o primeiro rascunho, mas eventualmente isso será importante para você compreender o que sua personagem quer.
Quando você finalmente descobre a biografia da sua personagem, sua vontade é conta-la ao leitor. Mas isso são notícias velhas, o que importa é o que está acontecendo agora. Randy Ingermanson e Peter Economy dizem que a biografia é como alho: ajuda a avivar as coisas, mas só uma pitada já faz grande diferença. É melhor deixar o leitor querendo mais dessa biografia do que menos. E se você colocar demais pode acabar sufocando a história. Eles sugerem que você saiba dez vezes mais sobre a história da personagem do que você revela ao leitor.
Definindo a biografia da personagem
- Descreva sua personagem: Qual a aparência de Gabriela? Que cor são seus olhos, cabelos e pele? Anote a data de aniversário, e dados que parecem importantes para você.
- Escreva sobre seu nascimento, infância e adolescência: Onde Gabriela nasceu? Quem são seus pais e avós? Escreva a primeira memória que ela teve, os traumas de infância, sobre como ela sofria bullying no ensino médio, qual era sua matéria favorita na escola, etc. Não pare por nada, apenas bote no papel. Sempre é possível voltar e corrigir depois.
- Leve-a à vida adulta: Em que faculdade Gabriela estudou? Era pública ou particular? Ou ela deixou os estudos para se dedicar ao emprego? Quem eram seus amigos e inimigos? Ela começou a namorar ou terminou, talvez se casou?
- Entreviste sua personagem: Pergunte-a o que ela aprendeu. O que ela gosta sobre a vida? Mais importante: o que ela quer mudar? Qual a coisa que ela mais gosta e a que mais odeia sobre si mesma? E sobre as pessoas ao redor? Você precisa saber dessas coisas para entender o futuro de Gabriela.
Isso é só o começo. Com o tempo você conhecerá mais sobre Gabriela e será capaz de estender sua biografia. Também é possível que você mude de ideia e altere alguma coisa, mas isso não é problema, muito pelo contrário: significa que aprendeu mais sobre aquela pessoa.
Como personagens nunca serão exatamente como você, podendo pertencer a outras etnias e culturas, falar outra língua, ou simplesmente fazer parte de outro gênero ou orientação sexual. Então, fazer pesquisas é sempre importante para poder conhecer o meio que sua personagem vive, e poder criá-la de forma verossímil. Tome cuidado, porém, para não pegar todas as características típicas de um grupo, pois isso apenas cria estereótipos. Sua personagem tem de ser diferente em algum ponto, para que ela seja única e especial, porém não divirja em todos os aspectos, senão será acusado de não ter feito sua pesquisa.
Valores, ambição e objetivo
Após estudar o passado da personagem, está na hora de olhar para seu futuro. Porém, ninguém sabe o que vai acontecer, pois o futuro é incerto. Apenas podemos ter esperanças e sonhos, além de nos precaver para eventuais imprevistos. Você deve saber o que sua personagem tenciona para o futuro. Isso é geralmente chamado de motivação, e se divide nas três categorias citadas no subtítulo.
Valores: As verdades interiores
Se quiser deixar um amigo maluco, pergunte: “o que faz a vida valer a pena?” Independentemente do que ele responder, continue perguntando: “Por que isso faz valer a pena? Como você sabe?” Até chegar uma hora em que ele irá responder: “Não sei, é assim porque é assim”. Aí você sabe que chegou na verdade mais profunda que está gravada nele, sendo incapaz de explicar. Esses são os valores.
Valores são verdades óbvias para suas personagens, elas não conseguem explicar. Claro, estes não são verdades absolutas, podendo estar incorretos muitas vezes. Além disso, você deve ser capaz de explicar os valores de suas personagens, mesmo que elas não possam. Numa cultura cristã, por exemplo, a existência de um deus é algo inexplicável e óbvia, não importa se é verdade ou não. Se sua personagem nasce em tal meio, ela não saberá dizer por que Deus existe, mas você pode saber se ele existe ou não, pois você é quem criou o universo, além de saber que ela acredita nisso porque faz parte da cultura onde ela foi criada.
Nada disso precisa ser explicado ao leitor. E ele não precisa, também, acreditar que os valores são verdades óbvias ou consistentes. Você precisa apenas convencer o leito que sua personagem acredita naquilo como verdade absoluta.
Procure criar dois ou três valores para cada personagem importante. Tais valores devem ser contraditórios, pois isso cria um conflito interno que ela nunca será capaz de resolver. E chegará um momento em que ela precisará fazer uma escolha em que cada alternativa será conflitante com algum dos valores. Qual deles irá sobressair? Essa pergunta torna a personagem e, consequentemente, a história interessantes.
Como exemplo, veja Darth Vader, que supostamente tem um valor que diga “Nada é mais importante do que poder”. Se ele tiver apenas este valor, ele é um vilão raso e desinteressante. Agora, suponha que Vader possua outro valor que diga “Nada é mais importante do que meu filho”. Agora há uma contradição, pois não é possível que tanto o poder quanto seu filho sejam ambos a coisa mais importante para ele. Em algum momento, ele terá de escolher entre um e outro, tornando-o imprevisível. E interessante.
Ambição: A vontade abstrata
Os valores não são suficientes. Deles surge um desejo para que as coisas mudem. Se você perguntar a sua personagem o que ela quer, ela te dará uma resposta abstrata, assim como as concorrentes num concurso de miss desejam “a paz mundial”. O que “paz mundial” quer dizer exatamente? É algo muito complicado de visualizar. É um mundo sem guerras? Ou sem doenças? Ou os dois?
Assim como a paz mundial, a ambição é abstrata. E ela deve vir dos valores da personagem. Se ela tem um valor que diz que “o poder é a coisa mais importante”, sua ambição pode ser “eu quero ser a ditadora do mundo”. É algo válido e faz sentido.
Embora uma personagem tenha diversos valores contraditórios, a ambição deve ser apenas uma. Além disso, é possível que a mesma ambição seja originada de valores bem diferentes. Por exemplo, pode haver outra personagem que ambiciona ser “a ditadora do mundo” a partir de um valor que diz “ajudar aos outros é mais importante do que tudo”. Ela quer se tornar ditadora para poder ajudar as outras pessoas.
Objetivo: O guia da história
A ambição é interessante, mas é abstrata demais e não mostra um caminho a seguir. Por isso, precisamos de uma resposta concreta para a pergunta: “O que sua personagem deve fazer para satisfazer sua ambição?” Tal resposta é o objetivo da história.
Assim que sua personagem principal tiver um objetivo, você terá uma história, pois agora ela terá um caminho a seguir. Se ela não tem um objetivo, você simplesmente não tem uma história.
Existem cinco pontos que tornam um objetivo interessante:
- Objetivo: Parece redundante, mas um objetivo precisa ser mesmo objetivo. O leitor deve saber dizer se a personagem o atinge.
- Simples: O leitor deve conseguir visualizar como o é sucesso.
- Importante: O leitor deve entender que o objetivo faz diferença.
- Alcançável: O leitor deve acreditar que tal objetivo pode ser atingido pela personagem.
- Difícil: O leitor deve acreditar que o objetivo não seja atingido.
Isso também leva à questão central da história, que se resume a perguntar: “A personagem principal atingirá seu objetivo?”.
Além disso, cada personagem importante deve ter o próprio objetivo. A questão central se resume ao principal, mas as outras também devem ter um guia para a história. Tais objetivos são importantes porque geralmente se opõe ao da personagem principal, criando conflitos, e cada um deles define uma linha diferente da história, gerando um enredo largo e rico.
É importante notar que cada personagem acredita ser a principal. Apesar de você preencher os papéis e definir um protagonista, todos devem acreditar ser o herói. Isso os torna mais profundos e realistas.
Conclusão
Criar personagens é uma das tarefas mais trabalhosas para o autor. Ainda assim, é uma das mais importantes, pois são as personagens que contam—ou melhor, que vivem—a história. É importante trata-las como se fossem reais, dando profundidade e fazendo os leitores se identificarem com elas. Seguir uma perspectiva psicológica também pode ser uma boa ideia, talvez até visitando um psicólogo e analisar seus métodos, aplicando-os às suas personagens. Há certo tempo, postei aqui sobre os tipos de personalidade MBTI e como eles podem servir como recurso à criação de personagens (eu mesmo uso o artigo como referência quando estou desenvolvendo). Entrevistá-las pode também ser uma boa ideia, perguntando cada vez mais até não achar respostas e aí encontrando seus valores (ontem encontrei um subreddit que se trata justamente de postar um AMA [ask me anything, “pergunte-me qualquer coisa”] se passando por sua personagem, assim outros perguntam e você pode entender mais sobre os atores de sua história; porém, só serve realmente para quem entende inglês).
Enfim, espero ter ajudado nesse ponto que é um dos mais problemáticos, especialmente para novos escritores. Que agora consigam criar personagens mais profundas, interessantes e imprevisíveis, embora consistentes.
Cara… Essa foi de longe uma das MELHORES dicas que já vi até hoje.
Valeu mesmo. Continue postando!