O dia estava como todos os outros. Os raios de sol batiam na janela no ângulo em que deveriam bater pra aquele horário e época do ano. De tanto ficar ali, ele já era capaz de dizer o horário apenas pela luz ambiente. A TV brilhava com sua luz bruxuleante, iluminando o resto da sala aonde o sol não chegava. Passava um programa qualquer, ele mesmo já nem se importava com as besteiras da televisão. Ele estava esparramado, com os pés sobre o braço do sofá, um copo de milk-shake na mão e o controle remoto ao alcance – não que ele se importasse em mudar de canal. Enfim, era um dia como todos os outros.
A porta se abriu e ela entrou bufando como sempre fazia. Ele nem se mexeu e continuou olhando para a tela como se estivesse prestando atenção. Ela largou a bolsa sobre a mesa e sentou-se na poltrona, depois de retirar uma caixa de pizza que estava sobre o assento. Ela olhou pra TV por um tempo e logo olhou para ele. Visto que ele não iria se incomodar, ela tratou de começar a falar:
— Você não se de cansa dessa vida?
Ele devolveu um olhar longânime. Logo percebeu que não seria resposta suficiente, tratou de usar o método verbal.
— Já me cansei. Mas o que posso fazer?
— Pra começar, – ela respondeu sem pausa – poderia arranjar um emprego. Já nem sei quando foi a última vez que você fez algum trabalho. Deveria pensar em outra carreira.
— Só sei fazer música. Se não for isso, não há nada mais para mim no mercado.
— Isso é o que você quer acreditar. Mas então, pelo menos, poderia arrumar essa bagunça. A conta do serviço de limpeza está um absurdo. Com meu salário, não vou poder manter isso por muito tempo.
— Você está muito estressada, deveria rel… – então ele ficou mudo.
— O que foi? Eu deveria fazer o quê?
Mas ele pediu que ela fizesse silêncio. Agora, a despeito da maior parte do tempo, ele se concentrava na TV. Uma notícia de última hora lhe chamava a atenção. Ela parou para olhar também, porém não achou aquilo tão interessante quanto ele achava. Ele aumentou o volume.
“Estamos aqui à frente do prédio Kamim, que o exército acaba de ocupar por motivo de uma suspeita gravíssima em relação aos proprietários.” – dizia o repórter – “Aparentemente existe uma conspiração contra a paz mundial acontecendo no interior do edifício, pregada por uma espécie de sociedade secreta. O governo recusa-se a dar maiores informações. Algumas pessoas afirmam que essa ocupação foi decidida pela Grande União com quase unanimidade, durante uma assembleia extraordinária que não foi divulgada. Ainda não fomos capazes de verificar essa informação”.
— É aquele prédio no centro. Eu te falei que achava estranho aquele lugar estranho.
— É só um prédio velho – ela respondeu.
Ele concordou em silêncio, sem de fato se importar com o que ela havia dito, e continuou a assistir a matéria, que não informava muito mais do a que nota inicial. Ela levantou-se e foi até a cozinha, procurar algo para comer. Após um minuto ou dois ela reapareceu na sala.
— Onde está aquele suco de latáriu?
— Eu não sei – ele respondeu sem desviar os olhos da TV.
— Como assim “não sabe”? Onde você deixou?
— Em lugar nenhum. Eu não o peguei.
— Não acredito – ela botou a mão sobre o rosto pro um momento e bufou – Não lembra que eu lhe pedi para comprar? Uma única coisa eu te peço e você não faz. Poderia ao menos fazer o favor de ir agora ao mercado?
— Eu posso pedir para entreg… – ele decidiu não terminar a frase quando olhou para a expressão dela – Está bem, já vou!
Ele foi ao banheiro, lavou rosto e penteou o cabelo. Também trocou a roupa amarrotada antes de sair.
Andou pelas ruas sem pressa, pensando sobre o incidente no prédio. Não sabia o porquê, mas aquilo lhe chamara a atenção. Ele sentia como se fosse um déjà vu, como se aquilo fosse uma repetição ou como se ele já soubesse de antemão que fosse acontecer. Tudo aquilo era uma sensação nova que ela ainda não havia experimentado. E ele não entendia por que aquilo o incomodava tanto.
— Bom dia, senhor; seja bem-vindo! – disse-lhe uma voz feminina com um entusiasmo formal.
Por um segundo achou que chegara ao seu destino sem perceber e estava sendo atendido por alguma vendedora do lugar, mas logo viu que não. Era uma moça loura, com os cabelos escorrendo até o ombro, usando uma camisa folgada e saia comprida. Ele viu que ela estava em frente a uma loja bem diferente do que ele procurava, onde vendiam diversos tipos de ervas. Achou estranho ela ter lhe cumprimentado, visto que ele não fizera menção de entrar. Ficou olhando-a sem saber o que fazer ou dizer, até que a moça mudou a expressão.
— Oh, desculpe-me, senhor. Acreditei que fosse outra pessoa. Sinto muito se o incomodei.
— Não há problema nenhum – ele ainda estava atônito ao responder.
Ele logo voltou a andar, sem entender a situação. E também depressa um homem passou no sentido contrário ao que ele ia, esbarrando nele com uma intensidade que o desequilibrou quase ao ponto de derrubá-lo. Ele olhou para trás com o cenho franzido, numa reprimenda silenciosa. O outro, no entanto, continuava a andar. Porém, após alguns passou o tal homem parou e se virou, lançando a ele um sorriso de reconhecimento.
Ele estranhou aquilo, observando a cena como se não fizesse parte dela. Viu o homem andar de volta, lhe pegar os ombros e, então, mudar de expressão como se percebesse agora que cometera um erro.
— Eu sinto muito – o outro disse – Acreditei que fosse outra pessoa.
— Bem, é a segunda vez que isso acontece em menos de cinco minutos – ele olhou para a moça da loja de ervas que acompanhava a cena.
— Então não foi um erro. Se nós dois pensamos a mesma coisa, você deve ser especial. Já conseguiu fazer algo que antes achava impossível?
— Hã? Não, do que você está falando.
O homem, ainda sem largar seu ombro, aproximou-se a passou a olhar profundamente em seus olhos, como se procurasse algo minúsculo que estivesse lá. Ficou assim por ainda alguns minutos.
— Você acha que algo está estranho. Sente no ar alguma coisa diferente, algo que os outros acham normal.
— Eu acho você estranho.
— Sabe muito bem do que estou falando. O prédio, o exército… A sua esposa.
Ele sentiu seu coração se acelerar. Aquele estranho lera sua mente de uma forma que ele não podia acreditar. Começou a ofegar, pensando em tudo que acontecera recentemente. O tal homem acertara em cheio, sobre todas as coisas que pareciam normais antes, mas agora estavam distorcidas. Achou que estivesse ficando maluco. Olhou ao redor procurando algum pilar da realidade, algo que pudesse provar que aquilo era real. Viu o homem estranho e viu a moça da loja e depois nada mais viu. Ele já tinha desmaiado.
(Esta é a segunda das 52 crônicas que pretendo publicar este ano; exatamente uma por semana, toda segunda. Note também que esta história se passa dentro do universo que criei para o livro que estou escrevendo)
A primeira pode ser encotrada aqui.