Ele chegou à sala um pouco antes do começo da aula. O lugar estava quase vazio, a maioria dos alunos ainda não havia chegado. Três pessoas estavam sentadas ao fundo do recinto conversando alto. Leonardo os cumprimentou com um gesto com a cabeça e um sorriso mecânico quando eles acenaram. Sentou-se em seu lugar habitual, abriu seu caderno, pegou uma esferográfica e fez menção de começar a escrever, mas parou antes que a caneta tocasse o papel e franziu o cenho, sem saber o que iria anotar. Apoiou o cotovelo esquerdo sobre a carteira e seu queixo sobre a palma da mão, mantendo seu olhar em algum ponto da parede, pensativo. Com a mão direita, batia regularmente a ponta da caneta no caderno.
Foi interrompido por um colega que bateu com a mão em sua mesa. Assustado, moveu-se instintivamente para uma posição de alerta. Numa fração de segundos, percebeu o que havia ocorrido, franziu o supercílio e encarou, sério, André, o causador da confusão, que ria divertidamente.
— Calma, foi só brincadeira – ele explicou.
Leonardo manteve seu olhar seco em direção a ele.
— Ok, parece que você não gostou. Não farei novamente. Mas você estava mais concentrado do que o normal. No que anda pensando?
Aliviou sua expressão carrancuda, mas demorou um tempo para que formulasse a resposta. Leonardo não queria revelar suas intenções, para quem quer que fosse, antes de possuir algo concreto.
— Nada de especial – disse por fim. – Pensei ter uma ideia para melhorar meu algoritmo de transcrição de ditado, mas acho que não ia dar certo. Não consegui pôr no papel. – ele não gostava de mentiras, mas admitia que existissem momentos nos quais eram necessárias.
— Ah. Não sei se é possível melhorar aquele programa, já é bem eficiente. E, a propósito, você trouxe aquele livro que eu te pedi?
Ele não respondeu verbalmente, apenas abriu sua mochila e puxou o pesado volume e entregou ao colega, que o pegou e agradeceu, dizendo que provavelmente iria demorar algum tempo para devolver. Leonardo explicou que não seria um problema, pois ele não precisaria do livro logo. Na verdade, ele conhecia bem os conceitos explicados no texto e o usava raramente para alguma referência mais específica. Mas como acabara de se envolver em um projeto bem diferente, não precisaria mesmo do livro tão cedo.
André era tão alto quanto Leonardo, mas tinha ombros largos e músculos mais definidos, pois costumava praticar esportes com certa frequência, mais especificamente natação e futebol. E, também, fazia certo sucesso com as mulheres. Sua pele era da cor do café-com-leite e seus olhos castanhos. Deixava os cabelos pretos sempre curtos e uma barba rala na face.
Os dois se conheciam desde que eram bixos, termo usado para designar os calouros na universidade. Leonardo, com seu jeito de não aceitar ofensas como brincadeira, sempre fora totalmente contra os trotes. Seus protestos contra os veteranos causariam, provavelmente, uma briga feia ou, numa maior probabilidade, Leonardo sairia bastante ferido dali se não fosse a intervenção de André que, diplomaticamente, conseguiu um consenso entre ambas as partes.
Ele foi um que, além de Juliana, o ensinou sobre alguns comportamentos normais na sociedade. Leonardo, muitas vezes, achava um absurdo que determinados comportamentos pudessem ser considerados “normais”, mas acabava aceitando que as outras pessoas fizessem aquilo enquanto não o envolvesse diretamente. Era o máximo que seus amigos conseguiam extrair.
Morava na zona leste da cidade e, para não ter que atravessar extensa São Paulo todos os dias, quando começou o curso de graduação mudou-se para uma república de estudantes nas proximidades do campus. Cursara os ensinos fundamental e médio em escolas públicas na região pobre que era a periferia da cidade. Embora as universidades públicas fossem excelentes, as escolas de nível básico tinham condições lamentáveis e ensino precário. Apesar disso, esforçou-se nos estudos e consegui passar no vestibular, em uma das últimas posições, mas, como ele mesmo dizia, “o importante é passar, vou fazer o mesmo curso que o primeiro colocado”.
Encontrou dificuldades para acompanhar as aulas que eram ainda mais complicadas do que ele imaginara a princípio. Por sorte, ou por destino, fizera amizade logo no início com o melhor aluno, que lhe tirava dúvidas e auxiliava no entendimento das matérias. Assim, conseguiu manter suas médias acima do mínimo necessário para ser aprovado. Apesar de não ser inteligente como Leonardo, era muito esforçado e não desistia das coisas tão facilmente.
Para sustentar-se, como não podia contar com o apoio de sua pobre família, trabalhava em tempo parcial como vendedor em uma pequena loja de produtos eletrônicos, o que fazia com que muitas vezes ele fizesse, não oficialmente, também o papel de consultor. O trabalho, em geral, era tranquilo e ele possuía certa flexibilidade para estudar ou terminar algum trabalho durante o expediente nos momentos em que não houvesse clientes. O patrão costumava dizer que ele trabalhava muito bem, por isso permitia tais regalias, e ficava preocupado que, quando André se formasse, ele perderia seu melhor funcionário.
Por incrível que pareça, André e Juliana não se conheciam. Como Leonardo nunca se encontrava com Juliana no campus, e nunca via André fora do campus, aconteceu de não se esbarrarem. Às vezes, Leonardo comentava sobre “um amigo” ou “uma amiga”, mas nunca lhe passou pela cabeça que ele se referia sempre à mesma pessoa. Como Leonardo não apreciava falar de sua vida pessoal, achava que era desnecessário falar sobre um para o outro. Os dois chegaram a ter dúvida de que Leonardo, com seu jeito único, realmente conhecesse alguma outra pessoa, mas como sabiam que ele se sentiria ofendido se desconfiassem dele, – eles não acreditavam que Leonardo era capaz de mentir – nunca chegaram a questioná-lo.
Leonardo não prestou muita atenção à aula. Estava distraído pensando em seu novo projeto. Pensava sobre a viabilidade de tudo, sobre custos, sobre consequências. Mas, ainda que parecesse impossível, sabia que, se obtivesse sucesso, tudo teria valido a pena. Então, pegou da mochila o livro sobre teoria da personalidade e começou a lê-lo. Interessou-se pela leitura e começou a notar certos aspectos de sua própria personalidade.
— Por que está lendo um livro de psicologia? – perguntou André, curioso.
— Eu acho interessante desvendar alguns mistérios da mente.
— Pode até ser, mas você não deveria prestar atenção à aula?
Leonardo olhou para a lousa, onde o professor anotava algo referente à sua explicação.
— Isso eu já sei. Não preciso prestar atenção.
André não duvidou que ele já soubesse. Sabia que Leonardo podia ser considerado um gênio. Contudo, ficava intrigado com a capacidade dele de aprender qualquer coisa num instante, enquanto ele próprio brigava consigo para botar algo na cabeça. Além disso, tinha certa dificuldade para entender as explicações dele que sempre referenciavam algo muito complexo, ou que ele ainda não havia aprendido. Mas quando conseguia entender, via que aprendera bem mais do que precisava, o que poderia ser útil no futuro.
No intervalo entre as aulas, Leonardo sentou em um banco isolado dos demais para continuar a leitura. Em geral, ele ficava junto dos colegas ouvindo as histórias que eles contavam. Nunca tinha algo a contar, pelo menos não algo que os interessasse, então ficava apenas tentando entender o comportamento que ele não conseguia assumir. Por mais que tentasse, não conseguia entender muito bem os motivos das ações das pessoas. E, em muitos casos, não queria, conscientemente, deixar de ser o que era.
Na aula seguinte, não interrompeu a leitura. Viu que a explicação seria redundante e, mesmo que ele não conhecesse o assunto, poderia aprender em outro momento em um tempo menor. Sendo assim, seria mais proveitoso que ele aproveitasse o tempo da aula para ler.
Estava realmente interessado pela ciência da psicologia. Lendo sobre os mecanismos de definição de personalidade, percebeu que gostava daquilo.
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