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O gênio, a garota e a ideia – Parte 3

   Postado por: George Marques   em Capítulo 1

Juliana era estonteantemente linda. Tinha 1,72m de altura, além de seu salto de cinco centímetros, cabelos ondulados longos – as pontas chegavam à cintura – e negros como a noite, que geralmente ficavam trançados. Seus olhos verdes e sua pele clara que facilmente se enrubescia chamavam a atenção dos homens. Era frequentemente assediada e, por isso, se vestia de forma discreta. Pelo mesmo motivo, desde a adolescência, ela pintava seus cabelos, naturalmente loiros, de preto, tentando evitar se sobressair. Claro que isso não diminuía sua beleza. Estava usando um traje formal inteiramente preto, fazendo com que seus olhos claros se sobressaíssem ainda mais em meio à negritude que cobria seu corpo.

Quando ela viu Leonardo aparecer na porta, acenou para que ele localizá-la. Fazia um gesto veemente para que todos percebessem que ela estava acompanhada. Durante os dez minutos que esperara à mesa, já teve que dispensar dois oportunistas que tentaram seduzi-la. Às vezes ela sentia raiva da própria beleza. Manteve o aceno até que Leonardo olhasse para ela. Ela, então, abriu um sorriso amistoso enquanto acompanhava, com os olhos, ele se aproximar.

Leonardo sentou-se, disse apenas “oi” e ficou olhando com sua expressão neutra comum para Juliana. Ela sabia que ele era bastante exato, que tinha suas próprias interpretações sobre o protocolo social e que não diria mais nada antes que ela o respondesse. E, por isso, demorava um tempo para responder, pois gostava do olhar dele que era diferente dos outros homens, que tentavam devorá-la com os olhos. Mas, depois de um tempo, sempre se sentia intimidada pelos globos profundos de seu amigo. Levantou-se, o cumprimentou com um beijo no rosto e voltou a se sentar.

— Frio e pontual como sempre.

Ele mostrou um pequeno sorriso sem graça e se manteve calado.

— Nem lembro quando foi a última vez que almoçamos juntos. Você realmente me surpreendeu com o convite.

— É. Faz mesmo bastante tempo desde a última vez.

— E então, qual a ideia maluca que teve desta vez?

— Acho melhor comermos primeiro.

— Vai ser tão cansativo assim?

— Acredito que não muito. Eu posso explicar primeiro e comemos depois, mas não posso fazer os dois ao mesmo tempo. Acho mais conveniente deixar a explicação por último.

— Ok. Eu estou muito curiosa para saber o que se passa por essa mente obscura, mas posso esperar um pouco, pelo menos.

Quando o garçom veio atendê-los, Leonardo pediu uma paella de pato com feijão Santarém, uma especialidade da casa. Juliana pediu um solomillo. Durante os trinta minutos da refeição eles conversaram sobre as novidades. Ou melhor, Juliana contou as novidades, pois Leonardo não tinha uma vida social tão agitada para ter o que contar, além de ele não gostar de falar sobre sua vida pessoal com quem quer que fosse. Falaram também sobre a vida acadêmica. Juliana cursava Psicologia e, assim como Leonardo, estava no terceiro ano. E era, também, a melhor aluna de seu curso.

Eles se conheceram aos treze anos. Juliana já era muito bonita e assediada pelos colegas da escola e do bairro. E ela já não suportava isso. Tentava ao máximo fugir dos garotos com os hormônios à flor da pele que se apaixonavam facilmente por ela. Ela também sempre fora muito inteligente, o que fazia com que suas “amigas” só se interessarem por ela na época das provas. Queria isolar-se de tudo aquilo e sentia falta de um amigo de verdade.

Foi quando, na sétima série, ela viu o aluno novo e desconhecido que estava sentado em uma das cadeiras rabiscando algo no caderno. Percebeu que ele estava muito concentrado e não dava bola para o mundo ao seu redor. Ela achou a cena interessante e ficou curiosa para saber o que tanto ele escrevia.

Ela sentou-se na cadeira à frente dele, que não estava vaga a princípio, mas seu charme era capaz de muitas coisas. Virou-se para trás e debruçou-se sobre a carteira do garoto. Ele não percebeu, ou não se importou, e continuou rabiscando. Ela viu que eram diagramas de algo que não compreendia.

— Oi, sou Juliana. O que você está fazendo?

Ele parou imediatamente e a encarou, mas sem mudar a expressão de concentração que ostentava, e ficou mudo por um tempo. Juliana se perguntou se ele estava vendo-a ou se apenas tirara os olhos do papel para pensar algo. Logo ela percebeu que, na verdade, ele estava tentando formular uma resposta.

— Estou fazendo um projeto – disse ele, voltando a rabiscar vertiginosamente.

— E em que consiste esse projeto?

Ele olhou-a de novo e demorou um tempo para responder.

— Bem, é algo razoavelmente simples. Estou tentando adaptar os interruptores de lâmpadas para que operem através de um controle remoto como de uma televisão.

— Uau! Você é capaz de fazer tal coisa? É um projeto muito útil.

— Sim, acredito que consigo fazer. Tive a ideia porque quis apagar ou acender a luz de qualquer ponto do meu quarto. Essa é a utilidade original.

— Muito legal. Você consegue fazer isso com outros equipamentos elétricos, como os ventiladores?

Concentrado, ele a analisou em silêncio a proposta de Juliana. Ela passou a pensar que tivesse falado alguma besteira, mas ele sorriu de repente e disse:

— Sim! É uma ótima ideia! Não tinha pensado nisso.

Anotou algo no canto do caderno e ela pôde notar que ele também tinha anotado, entre parênteses: “Ideia da Juliana”. Ela ficou surpresa com a nota e, também, pelo fato dele lembrar-se de seu nome que ela dissera quando ele nem estava prestando atenção.

— Você ainda não me disse seu nome.

— Leonardo. – ele respondeu objetivamente.

— Ah, como o Da Vinci?

— Temos o mesmo prenome, mas não sou comparável a ele.

— Ao que me parece, é sim. E acho que vamos nos tornar bons amigos.

Leonardo voltou a desenhar diagramas na folha de papel.

Juliana percebeu que ele era exatamente o tipo de pessoa que ela estava procurando. Alguém que fosse inteligente para que não implorasse por colas na hora das provas e que, ao mesmo tempo, não ficasse babando por sua beleza. Aliás, ficara impressionada por como ele falava com fluidez, enquanto que os outros garotos geralmente gaguejavam quando conversavam com ela.

Algum tempo depois, Juliana insistira em conhecer a casa de seu amigo. Ele não tinha a intenção de mostrar-lhe seu quarto – devido a sua aversão a mostrar sua vida pessoal – e sabia que teria de fazê-lo se ela fosse até sua casa. Mas, por fim, acabara cedendo. A mãe de Leonardo ficara impressionada e aliviada quando ele apareceu em casa com uma colega de escola. Ele nunca tinha levado amigos para casa e agora viera com uma garota simplesmente linda. Leonardo já deixou claro desde o início que não, ela não era sua namorada.

Juliana deduzira que Leonardo tinha um quarto Hi-Tech, cheio de robôs e tralhas eletrônicas jogadas por todos os lados, com pôsteres de games nas paredes. Deparou-se, na realidade, com um quarto impecavelmente arrumado. Não havia um pôster sequer na parede, o lençol na cama estava totalmente liso e todas as coisas tinham um lugar próprio. Havia um guarda-roupa, sobre o qual repousavam três caixas de papelão idênticas onde Juliana acreditava estarem guardadas as tais tralhas eletrônicas. Ao lado da cama estava um criado-mudo com duas gavetas e era onde ficava um abajur simples, um bloco de notas com uma lapiseira e o seu telefone celular conectado à tomada para recarregar a bateria. Uma série de prateleiras acomodavam alguns livros. Ela pôde notar que ele possuía alguns livros do Tolkien, a série Harry Potter, alguns romances que ela não conhecia e meia dúzia livros técnicos sobre eletrônica e informática. Também havia uma escrivaninha que comportava o computador, um porta-canetas cheio, um calendário e um caderno de anotações.

— Não precisava ter arrumado o quarto só por que eu viria – ela disse em um tom provocativo

— Meu quarto é sempre assim – ele respondeu com seriedade.

— Não precisa ficar sério assim, eu só estava brincando.

— Desculpe-me, eu não percebi. – Leonardo abriu um sorriso forçado e sem graça.

— Você pode ser muito inteligente, mas tem coisas que vou ter que te ensinar.

Juliana fez com que Leonardo aprendesse algumas regras implícitas do convívio social. Ele já espantara muita gente com seu jeito frio e sequer tinha percebido o motivo. Com o tempo, ele aprendera a ser mais tolerante com os modos das pessoas ao redor e foi capaz de evitar que as pessoas se afastassem. Conseguiu manter contato com uma pequena lista de colegas com os quais possuía interesses em comum. Mas ainda respondia algumas coisas sem pudor.

Um dia, caminhavam juntos quando Juliana fingiu empurrá-lo para o meio da rua. Ele ficou sério de repente e disse para ela que nunca mais fizesse aquilo. Ela tentou explicar que era brincadeira, mas ele retrucou não considerava de maneira alguma correr riscos ou ser ofendido como uma forma de entretenimento. Ela considerou que ele realmente tinha um bom argumento e chegou à conclusão que era mesmo sem graça, além de perigoso, realizar este tipo de gracejo. Prometeu – e cumpriu – nunca mais fazer algo parecido.

As pessoas sempre perguntavam para Juliana se Leonardo tentara fazer algo com segundas intenções. Ela ficava furiosa com esse tipo de pergunta e logo respondia que ele não era esse tipo de gente. Mas, em um momento, ela ficou curiosa para saber se Leonardo a considerava bonita. Ele disse, friamente como sempre, que ela era a garota mais linda que ele já vira na vida.

— E você não sente vontade de namorar comigo?

— É claro que meus hormônios fazem com que eu sinta uma atração física por você. Mas eu acredito que somos amigos e algo diferente disso só iria estragar tudo. Não consigo ver você como namorada.

Ela ficara impressionada pela resposta e pelo fato de ele conseguir controlar racionalmente seus sentimentos. Juliana percebeu que Leonardo era alguém com quem ela sempre poderia contar. Alguém que ela tinha certeza de que nunca faria algo para magoá-la e, por isso, deveria tomar o maior cuidado possível para não magoá-lo também. E ela tinha uma curiosidade tremenda de saber se ele se apaixonaria por alguém um dia. Não queria perder esta cena de jeito algum.

Quando terminaram de comer, Leonardo afastou os pratos e copos para que houvesse espaço para o seu não tão portátil MacBook. Abriu a apresentação de slides que fizera no PowerPoint. Juliana se espantara, pois as ideias dele até vinham com diagramas às vezes, mas era a primeira vez que via uma apresentação daquelas. Percebeu que ele não tinha se preocupado muito com a formatação e criara tópicos concisos. Ele então começou a explicação, que era, basicamente, o texto que escrevera naquela manhã, porém não precisava ler: mantinha as ideias na mente e seguia os tópicos que serviam como mnemônicos.

— Você sabe como funciona o cérebro?

— Como assim? Ninguém sabe exatamente.

— Sim, mas me refiro ao funcionamento em baixo nível.

— Você fala dos neurônios?

— Exato, é disso que eu estou falando.

— Até onde eu sei, os neurônios se conectam uns aos outros pelas sinapses formando uma rede e se comunicam pelas substâncias conhecidas como neurotransmissores.

— Exatamente. Você já ouviu falar em redes neurais? – as perguntas não estavam originalmente no roteiro, mas ele pensou que poderia pular uma parte da explicação em caso positivo.

— Eu fiz uma pesquisa multidisciplinar básica sobre o assunto. Até onde eu entendi, é uma forma de inteligência artificial que se baseia em redes de células organizadas de forma semelhante aos neurônios no cérebro.

— Sim, é exatamente isso. – ele avançou alguns slides. Lia-se “Simulação do cérebro” na tela. – As redes neurais tentam simular o funcionamento do cérebro através de uma estrutura semelhante. E assim criam softwares inteligentes que podem aprender a tomar determinadas decisões.

— Certo, estou acompanhando.

— Acontece que ninguém sabe exatamente como os neurônios processam a informação.

— Quer dizer que você descobriu isso?

Leonardo parou e ficou olhando seriamente para ela. Juliana sabia que ele detestava quando alguém se precipitava em concluir qual era sua ideia. Ela desculpou-se, sem graça, e pediu para que ele continuasse.

— Enfim, eu também não tenho ideia de como os neurônios funcionam individualmente, mas sei que os neurotransmissores enviam mensagens bem específicas para o resto da rede. Existe uma grande variedade deles e não se conhece, ao certo, a função de todos.

— Ok, aonde você quer chegar?

— Acontece que, enquanto pelo cérebro circulam muitos neurotransmissores diferentes, uma rede neural se baseia num sistema binário. Então, não é possível que algo com apenas duas variedades simule algo com dezenas. Minha proposta é criar uma rede neural com um conjunto mais abastado de entradas e saídas.

— Agora acho que entendi. Você quer criar um software que simule o cérebro. Não é a primeira vez que comenta o assunto. Achei que não tivesse funcionado.

— Aí é que está a questão: percebi que não é suficiente criar um software, exatamente. Minha intenção maior é criar o hardware. Um cérebro eletrônico composto de células básicas que, por sua vez, dispusessem de um conjunto de entradas e saídas tão rico quanto o do cérebro humano.

— E isso é possível?

— Sim. É razoavelmente fácil de fabricar. Mas aí voltamos ao software: como essas células individuais tratarão as informações?

— Você conseguiu chegar a uma conclusão?

Leonardo avançou para o último slide. Um grande ponto de interrogação era a única coisa presente na tela.

— Não exatamente. Eu sei que não precisamos copiar fielmente o cérebro, podemos criar um novo método de processamento que leve a resultados idênticos ou, pelo menos, semelhantes. Percebi que basta apenas definir que mensagens serão passadas entre os neurônios artificiais e como eles reagirão a essas mensagens: passar para frente ou tomar alguma atitude. Tem que se considerar que existirão vários tipos de neurônios que terão de ser programados separadamente.

— Então você pretende criar algoritmos para diferentes tipos de neurônios interpretarem um conjunto limitado de mensagens diferentes. É isso?

Ele fechou o MacBook e abriu um sorriso. Leonardo gostava de Juliana porque ela conseguia acompanhar facilmente seu raciocínio.

— Sim, o que é exatamente o que cérebro faz.

— Uau! Não consigo imaginar por onde começar. Mas você disse que precisaria da minha ajuda. Não vejo no que posso lhe auxiliar.

— O ponto é que, antes de eu começar a projetar o cérebro, eu tenho que saber de qual forma é possível implantar uma personalidade nele. Isto é a parte mais importante: a personalidade. O cérebro deve ser capaz de tomar decisões baseado nas heurísticas criadas pela genética e pela experiência.

— Seu objetivo final, na verdade, é programar uma personalidade em um dispositivo eletrônico. Agora entendi porque precisa de mim. Mas não sei se vou poder ajudar. Não tenho tanto conhecimento na área. Acho melhor você que tenha realizado alguma pesquisa específica sobre o assunto.

— Talvez, mas sei que você é capaz de superar qualquer um se resolver se dedicar. Além do mais, se isso der certo é bem provável que sejamos indicados ao prêmio Nobel. E eu quero compartilhar isso com você.

— Eu não tenho tanta certeza de que isso vai funcionar.

— Não estamos falando sobre religião, mas sobre ciência. Você não precisa ter fé, basta testar e confirmar ou refutar a hipótese. Nunca saberemos se nunca tentarmos.

— Você é maluco. Mas eu gosto de você e confio na sua inteligência. É a primeira vez que você me reserva alguma tarefa, então vou me dedicar. Saiba que ainda vai demorar um pouco, pois tenho que fazer uma pesquisa sobre o assunto.

— Sim, eu entendo. Vou te ajudar na pesquisa, assim ficará mais fácil para dar prosseguimento no futuro.

— Bem, vamos falar sobre isso mais tarde. É melhor pedirmos a conta.

Este texto foi postado quarta-feira, 16 de fevereiro de 2011 às 10:00 e arquivado como Capítulo 1. Você pode acompanhar as respostas a esta postagem no feed RSS 2.0. Você pode, também, deixar um comentário no formulário abaixo.

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