Após cerca de meia hora lendo notícias, Leonardo desceu até a cozinha, lavou prato e talheres que havia utilizado; então os secou e guardou no lugar devido. Ele sempre era organizado e gostava de manter tudo em seu respectivo lugar. Tinha problemas para lembrar onde largava as coisas e então preferia deixar tudo onde a rotina não o deixaria esquecer. Ele pegou um copo no armário, abriu a geladeira e encheu o recipiente com o suco de laranja que estava numa jarra. Então, subiu novamente para o seu quarto e pôs o copo cheio de suco sobre a escrivaninha.
Se Leonardo ouvisse alguém chamando seu dispositivo de “celular”, ele logo corrigiria indicando que na verdade era um iPhone, o famigerado smartphone da Apple. O aparelho fazia sucesso principalmente devido à quantidade inumerável de aplicativos à disposição na loja virtual própria, a App Store, que iam desde jogos a aplicações para produtividade, passando por alguns que não faziam muito sentido. Além disso, contava com uma câmera que era capaz de fotografar e filmar em alta definição. Mas, naquele momento, Leonardo estava interessado na função que até passava despercebida: a possibilidade de realizar chamadas através da rede de telefonia celular. Utilizou o número dois da função de discagem rápida, sendo que o número um discava para o telefone fixo de sua própria residência.
— Juliana – disse a voz do outro lado.
— Oi, sou eu. Você está ocupada?
— Não, pode falar qual ideia mirabolante você teve desta vez.
— Como sabe que eu tive uma ideia?
— Até parece que eu não te conheço. Pra você me ligar assim, deve ter algo em mente.
— Sim, tive um insight durante a madrugada. Será que hoje podemos almoçar juntos?
— Você está me convidando para um almoço? Então deve ser mesmo algo muito importante.
— Sim. Acho que vou precisar de sua ajuda.
— Não vai me adiantar nada sobre o assunto?
— Só tenho um rabisco em papel. Ainda preciso organizar a lógica da coisa toda.
— Ok. Que tal às treze no La Niña?
— Combinado.
— Tudo certo, então. Até mais, beijos.
Leonardo desconectou a chamada. Juliana nunca entendera por que ele sempre terminava as ligações daquele jeito brusco, sem se despedir, mas já estava acostumada e sabia que ele não fazia por mal: apenas não era bom com demonstrações de sentimentos. Ele não se importava com isso e achava que certas partes do protocolo social eram facilmente dispensáveis por não serem necessárias.
Em seguida, Leonardo pegou seu bloco de anotações que estava sobre o criado-mudo. Olhou demoradamente para o rabisco quase ilegível anotado a lápis durante a madrugada. Tentava formular algo concreto na mente. Quando já imaginou ter algo consistente, pegou seu gravador de voz digital e começou uma explicação sobre a ideia que tivera. Ele pretendia, na verdade, redigir um texto sobre o assunto, mas como não tinha uma boa coordenação motora para digitar com velocidade, preferia ditar para um gravador e depois transcrever o texto. Ficou algo em torno de quarenta minutos ditando.
A tarefa de transcrição era feita por um software que ele mesmo desenvolvera. Já existia uma quantidade razoável de aplicativos que tinham por tarefa converter áudio em texto. Mas não havia nenhuma solução eficiente, ainda mais em português, o que tornava o trabalho de ditar um texto tão complicado quanto digitá-lo. Por isso, Leonardo resolveu criar ele mesmo um software que facilitasse a transcrição em português e, por conveniência, baseado em sua própria voz. O programa se utiliza de uma gravação de voz no formato MP3 e criava um arquivo de texto em pouco tempo. Claro que o sistema não era perfeito e interpretava algumas palavras incorretamente. Cabia a Leonardo corrigi-las e também formatar o texto, mas era muito mais rápido do que digitar tudo aquilo.
Leu novamente o texto, fez algumas correções extras, especialmente na questão gramatical, e ficou satisfeito. Pôs-se a pesquisar artigos que tivessem relação com o que ele acabara de escrever. Sempre que Leonardo tinha uma ideia ele procurava se alguém já pensou a mesma coisa. Em caso positivo, enviava materiais colaborando com o autor original ou simplesmente deixava pra lá, pois via que seguir adiante com aquilo seria redundante. Neste caso, percebeu que quase não havia pesquisas na área e, das poucas que existiam, nenhuma se aproximava da conclusão a qual ele havia chegado. Sentiu uma ponta de ansiedade e seu coração passou a bater mais rápido.
Leonardo segurava com a mão uma lapiseira cujo topo tocava em seus dentes cerrados. Ele olhava para página em branco do caderno que ficava sobre a escrivaninha. Tentou desenhar uma sequencia lógica para explicar aquilo tudo à Juliana. Chegou a um rascunho razoável depois de tanto ter rabiscado algumas páginas. Por mais que ele gostasse de computadores e apostasse na tecnologia, para organizar pensamentos ele ainda preferia o velho lápis e papel. Perguntava-se se um dia a tecnologia conseguiria substituir algo tão simples. Em seguida ele criou uma apresentação de slides no PowerPoint sem muita riqueza de formatação, apenas para não perder a linha de raciocínio. Enviou o arquivo para seu MacBook Pro de quinze polegadas via rede WiFi, junto com texto transcrito e algum material do que havia pesquisado.
O laptop Apple de Leonardo era um produto topo de linha. A aquisição do computador portátil fora motivo suficiente para que ele implantasse uma rede sem fio. Assim poderia acessar a internet de qualquer lugar da casa. Isso valia também para o iPhone do qual ele já tinha posse. Ele estava feliz por sua mãe poder bancar seus “brinquedos”, já que ele não trabalhava, embora de vez em quando ganhasse alguns trocados com desenvolvimento de softwares e websites pela internet.
Ele olhou para o relógio e notou que faltavam vinte minutos para o meio-dia. Percebeu que teria que se apressar, caso contrário chegaria atrasado ao compromisso, coisa que ele detestava. Tomou um banho de dez minutos. Vestiu uma calça jeans, um par de tênis All Star pretos e uma camiseta com a frase “All your base are belong to us” em fonte monoespaçada, citação em inglês gramaticalmente incorreto resultada de uma tradução feita às pressas do japonês em um antigo jogo de videogame e que ficara famosa na internet no ano 2000.
Deu uma última conferida no material em seu MacBook para ter certeza que não faltava nada. Desligou ambos os computadores e enfiou o laptop na mochila. Pegou a carteira e o relógio de pulso. Olhou seu iPhone para ver se tinha alguma mensagem não lida ou alguma chamada perdida e constatou que não haviam notificações. Abriu o aplicativo de músicas enquanto pegava seu fone de ouvido bluetooth e o ligava. Então, pôs o dispositivo para tocar as músicas em ordem aleatória, que consistia em uma grande variedade de estilos desde samba até heavy metal. Leonardo apreciava música, mas nunca tivera habilidade para tocar instrumentos. Chegara a frequentar algumas aulas de violão, mas não teve um avanço considerável e acabou desistindo.
A falta de coordenação motora fez com que Leonardo fosse reprovado duas vezes no exame de direção. Provavelmente foi a única prova em que não tenha ido bem. Ele sabia sobre o funcionamento do motor e sobre os sistemas elétrico e hidráulico. Entendia como o combustível era queimado para mover os pistões e, consequentemente, os eixos do veículo. Sabia particularmente como usar os mecanismos do carro, mas o corpo não respondia de acordo e ele muitas vezes ligava o limpador de para-brisas ao invés de acender o farol ou errava o pedal de freio, além de ter grande dificuldade para manejar o câmbio. Dependia, portanto, do transporte público para se locomover. Andava sempre com seu Bilhete Único, o cartão usado para pagar a passagem nos sistemas de transporte coletivo da cidade.
Antes de apagar a luz do quarto, ele costumava checar o ambiente para ter certeza de que não esquecera nada. Desta vez, ele notara o copo vazio sobre a escrivaninha. Pegou o copo, apagou a luz e desceu até a cozinha para lavá-lo e guardá-lo. Era cerca de meio-dia e dez quando Leonardo trancou a casa vazia e andou durante quinze minutos até a estação ferroviária Granja Julieta. Esperou por cinco minutos para embarcar no trem sentido à Osasco. Desembarcou na estação Cidade Jardim vinte minutos mais tarde. Saiu da estação e seguiu pela Rua Prof. Artur Ramos até o cruzamento com a Rua Jean Sibelius, onde se situava o Restaurante La Niña, especializado em culinária espanhola. Chegara ao destino praticamente no horário marcado, como costumava fazer. Apesar de não gostar de chegar atrasado, ele também não se adiantava, portanto mesmo com seu cálculo preciso do tempo que levaria no trajeto, incluindo o intervalo do transporte coletivo, às vezes este o deixava na mão, fazendo com que atrasasse uns poucos minutos algumas vezes. Juliana já havia chegado.
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