As drogas e a liberdade sobre o próprio corpo

Muitos concordam com a ideia de que somos seres racionais e responsáveis pelos nossos atos e, portanto, podemos fazer aquilo que nos convier. Esse é ponto fundamental do libertarismo. Em relação aos direitos humanos, pode-se notar que o direito sobre o próprio corpo e a decisão do que vai – ou não – acontecer a ele é de inteira responsabilidade do individuo em questão. Qual o poder do Estado em dizer se você pode fazer uma tatuagem, botar um piercing, ou mesmo proceder a uma cirurgia estética (como o aumento de seios)?

O código civil brasileiro, em seu artigo de número treze – parte do capítulo sobre os direitos da personalidade, diz que “Salvo por exigência médica, é defeso o ato de disposição do próprio corpo, quando importar diminuição permanente da integridade física, ou contrariar os bons costumes.” Isso basicamente acaba com o nosso direito fundamental sobre o que queremos fazer sobre nossa própria existência física; particularmente acabando com um direito da personalidade, ao invés de acrescentá-lo. Sendo muito obscuro o que significam os “bons costumes”, que é subjetivo demais e, de certa forma, nos obriga a viver como o nosso redor, retirando parte do conceito de identidade.

Deixando toda a cultura de body modification de lado (isso inclui piercings e tatuagens), também os costumes religiosos de autoflagelação e a prática sadomasoquista, focarei basicamente no consumo de drogas.

Quando você consome algum produto, seja por ingestão, intravenosa ou outros meios, o processo biológico gera reações nos seus pensamentos, sentimentos e também na condição física de seu corpo.  Isso é verdade para o café que você tomou hoje de manhã, um analgésico para dor de cabeça e também para a feijoada do almoço. Tudo o que se bota para dentro do corpo será tratado e causará, em menor ou maior grau, algum efeito, seja ele desejado e agradável ou não.

Isso também acontece com o álcool e com o cigarro. São substâncias lícitas e vendidas em virtualmente qualquer lugar. Em especial, o álcool gera uma alteração de comportamento que pode ser perigosa e causar acidentes em alguns casos. Note que é uma contravenção penal “apresentar-se publicamente em estado de embriaguez, de modo que cause escândalo ou ponha em perigo a segurança própria ou alheia”, tendo como pena “prisão simples, de quinze dias a três meses, ou multa, de duzentos mil réis a dois contos de réis” (sim, a multa está notada em réis e não foi alterada).

O cigarro (mais especificamente a nicotina, uma de suas substâncias) é viciante quimicamente. O alcatrão faz muito mal a saúde, seja a de quem fuma quanto a de quem aspira a fumaça gerada. A questão é que apesar de ser comprovadamente nocivo à saúde, o fumo é liberado (embora a Anvisa tenha proibido os cigarros eletrônicos).

Qual o motivo, então, para as drogas serem proibidas? Se for porque possuem efeitos alucinógenos ou alteradores de comportamento, o álcool age da mesma forma e ainda assim é permitido. Se for porque causa dependência ou faz mal à saúde, o cigarro tem o mesmo problema e não existe proibição. Essas desculpas já não colam mais.

Outro ponto é que as pessoas sabem desses problemas. Tem uma foto de um pulmão podre no maço de cigarros, não dá pra alegar ignorância no assunto. As pessoas sabem que agirão diferentemente sob o efeito do álcool – aliás, esse às vezes até se torna o motivo para beber. Assim como sabem (ou ao menos deveriam saber) que o crack é extremamente viciante.

Apesar do código civil do nosso país não permitir uma liberdade sobre nós mesmos (talvez de forma inconstitucional, como questiona meu xará George Marmelstein Lima), não significa que precise se manter assim. Impressiona-me, aliás, o fato de tal texto ter sido redigido há onze anos; por ser relativamente recente, deveria ser mais libertário em relação aos direitos individuais. Aliás, o que aconteceria com quem violasse esse direito? Puniriam a pessoa que causou a modificação? Ou aquela que, efetivamente, violou ao próprio “direito” (que é mais uma negação de direto)? E lembre-se: você está proibido de cometer suicídio.

Considerando que tivéssemos liberdade total sobre nosso próprio corpo, sem deixar de lado o contexto libertarista da não-agressão e levando em conta que deveríamos ter tal direito, o uso de substâncias entorpecentes faria parte de tal direito. Embora seja correto impedir alguém embriagado de dirigir, não se pode impedir a pessoa de consumir álcool (embora seja outra contravenção servir bebida alcóolica “a quem se acha em estado de embriaguez”). Também não correto impedir as pessoas que de livre e espontânea vontade consumisse qualquer outro entorpecente (seja maconha, LSD, crack, cocaína ou qualquer outra coisa), contanto que o indivíduo tenha ciência de todas as consequências.

Além disso, a legalização das drogas gera um fator positivo na geração de empresas e empregos, a coleta de impostos e a redução de fundos do crime organizado. Tratando-se as drogas atualmente ilícitas pelas mesmas leis às quais os medicamentos passam, é fácil manter o controle e permitiria que as próprias pessoas decidissem o que podem ou não consumir. O fator “proibido é mais legal” também cessaria de existir.

Concluindo, acredito que o Estado deve ter um limite no que pode nos obrigar. Quero ter o direito de fazer o quiser com o meu próprio corpo e não vejo nada de errado nisso enquanto eu não interferir na vida de outras pessoas. “Se o governo pode nos dizer o que podemos inserir em nossos corpos, o que ele não pode nos dizer?” 1 Parece que somos livres, mas ainda falta muita coisa para sermos livres de verdade.

PS: Embora eu seja a favor da liberdade, aconselho evitar as drogas, a maioria delas (se não todas, incluindo as lícitas) geram consequências que não valem a pena. Só para deixar claro que não faço e não pretendo fazer apologia ao uso de drogas, muito pelo contrário.

Notes:

  1. Tradução livre do texto “Drug Legalization and the Right to Control Your Body

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