O artesão de sonhos 3

Sentado, atrás de sua mesa no canto da sala, a pequena luminária branca ligada, lançando seus raios de luz sobre o papel que repousava sob sua mão firme, enquanto seu lápis arranhava alguns rabiscos quase ilegíveis, mas que ele era capaz de compreender completamente. Aliás, ele era o único capaz de entender, não apenas as letras, mas todo o significado.

Esse canto lhe custara muito esforço de persuasão e concessão de sua parte para que sua mãe lhe permitisse ocupá-lo. Ele queria o quarto dos fundos, usado para guardar um monte de antiguidades que já haviam perdido a utilidade há muito tempo. Ele era capaz de encontrar coisas até mais velhas do que ele próprio. Chegou a pensar que talvez ele também devesse ser jogado fora, mas ainda acreditava ser útil para alguma coisa. Seu plano era tirar as bagunças e deixar o espaço livre para que ele pudesse organizar seus sonhos.

Contudo, sua mãe fora irredutível. Ainda havia algo de valor ali. Valor sentimental, segundo ela. Lembranças de um passado que nunca mais irá voltar, como ele preferia apontar. Mas era uma frase muito clichê e ele rabiscou de seu texto mental. Ele argumentou que o valor era a memória, que as coisas só serviam para juntar poeira, que seus sonhos seriam reluzentes no branco do papel, que ele não daria chance para amarelar. Mas ela dissera que não, de jeito algum. Sua veemência foi o suficiente para lhe fazer desistir de insistir, pelo menos nesse ponto.

Artesão de sonhos

Outro quarto, então? Mandasse seu irmão embora, que esse sim já tinha sua carreira definida e já passara da idade de seguir com a própria vida. Deixasse o quarto para ele, que enfeitasse as paredes com sonhos em murais pintados de branco e grafite, que acordasse no meio da noite a inventar um sonho novo para pendurar, que seu recanto sagrado estivesse disponível para ele poder ficar em paz.

Mas não. A mãe amava o irmão e não queria vê-lo partir. Ora, que ele amava também, todavia já passava da hora do irmão ir viver a própria vida e saísse da barra da saia mãe. Fosse ele ser feliz em outro lugar que assim é que crescem as pessoas para ser. Mas o irmão não queria partir, queria o contrário, que ele partisse e deixasse o lugar livre, que ele fosse rabiscar seus devaneios em outro lugar, que ele arrumasse algo decente para fazer.

Desistiu então de mais outra solução, pois dois votando contra um não há democracia que sustente. Enfim, pensou em outro lugar, mas a casa não era tão grande assim. Insistiu pelo canto da sala, que botasse uma mesinha, que ligasse uma pequena luminária, que deixassem seus sonhos brotar em meio ao som de seu tocador MP3 que abafava os ruídos vívidos das novelas das oito, que em tal mesa empilhasse seus sonhos diversos, um sobre o outro, conforme ficavam prontos. A mãe aceitou, não de bom grado, mas ele ficou feliz.

Porque o importante não era o lugar, não era o espaço, sequer era o isolamento. O que realmente importava era que ele pudesse ter um ponto onde ele pudesse encontrar seus sonhos e criá-los do nada, retirando-os do ar. E o ar estava em todos os lugares. Então, sentou-se em sua cadeira roubada da cozinha, ao lado da mesa simples que não era mais do que uma tábua envernizada sobre quatro pernas tortas, que balançaria não fosse o calço de madeira que a apoiava e sua precisão com a firmeza do lápis.

E começou a escrever seus sonhos e, enquanto escrevia, sentia cada um deles, como se estivesse vivendo naquele momento. Em seus sonhos, ele sentia os lábios da princesa quando o príncipe a beijava. Em seus sonhos, sentia o calor do sol da primavera sobre a grama do parque onde o menino brincava. Sentia a tristeza do filho ao perder seu pai amado e também a decepção do médico que não pôde salvá-lo. Sentia a benção de um deus que o padre lançava sobre a missa e a esperança do fiel de que sua vida iria melhorar. Sentia a dor da punhalada nas costas da vítima e o ímpeto do detetive ao caçar o assassino, assim como a satisfação da família ao encontrar a justiça.

Quando escrevia, ele sentia o que não conseguia na vida real. Ele concedia em seus argumentos, pois sabia que ele podia ser bem sucedido em seus sonhos escritos. Ele aceitava as broncas de sua mãe, pois nos sonhos ele era perfeito ou, quando não, sua falha era a salvação. Ele ignorava as contendas de seu irmão, deixava-se levar, pois em seus sonhos ele podia ser mais forte e, ainda assim, ser compassivo.

Às vezes lhe faltava algo na vida. Mas nos sonhos que ele escrevia ele vivia todas as vidas que quisesse ter. Nos sonhos, ele já vendia livros aos milhões. Na vida, isso ainda era futuro.

3 thoughts on “O artesão de sonhos

  1. Reply Vinícius Barros maio 17,2013 12:04

    Fantástico! Este belíssimo texto me inspirou bastante

  2. Reply Ceres set 9,2015 14:41

    Lindo texto, um exemplo de persistência e fé.

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